O Homem Duplicado - José Saramago

O que você faria se soubesse que em sua cidade com pouco mais de 5 milhões de habitantes existe alguém igualzinho a você? Corpo, voz, gestos. 'O Homem duplicado' escrito pelo ganhador do Nobel em literatura Saramago, questiona o quanto somos capazes de defender nossa identidade ameaçada.

Tertuliano Máximo Afonso, professor de história, questionador de métodos ultrapassados no ensino, se vê como a um espelho beija a face de seu dono ao assistir um filme indicado pelo colega de trabalho, professor de matemática. A partir de então, sua vida corriqueira, depressiva e desgastante passa a ser questionada sobre a duplicidade do ser.

O que era para ser apenas uma indicação cinéfila de um colega, a fim de distrair-lhe com futilidades, o deixa atordoado e confuso, perdido entre si e sua imagem de ator secundário de um filme nada conhecido, mas a partir de então muito cobiçado, intitulado “Quem Porfia Mata Caça”. O filme, rodado quatro anos antes, mostra um Tertuliano mais moço, de bigodes e assustadoramente parecido consigo, como fora antes. Em busca de respostas, Tertuliano busca em outros filmes, da mesma produtora, o nome do ator que com o passar dos anos ganha prestígio ao passar de um mero ator secundário para um dos principais personagens. Resolve então escrever à empresa, solicitando nome, endereço e telefone de Daniel Santa-Clara, pseudônimo de seu sósia, Antonio Claro, em nome de Maria da Paz, com quem tem um caso, afim de que não suspeitem.

Quando liga para Antônio Claro, sua mulher atende e tão semelhante voz os tem, confunde com seu marido, e o faz jurar que não ligará. Mas é Antônio Claro que retorna marcando um encontro nos arredores da metrópole. Encontram-se, despem-se, impressionam-se. São um só em dois, ou dois em um só. Nascidos à mesma data, mês e ano (um deles meia hora antes), descobrem ser original e duplicado. Tertuliano questiona que, se nascidos em tempos iguais, morrerão em tempos iguais?

A partir deste encontro a trama toma o rumo tecido pelo autor e resvala no inevitável sentimento de iniquidade que carregamos conosco. Helena, esposa de Antonio Claro, se vê atravessada pela incerteza de ter um marido ou um acompanhante e, durante dias embriagada pelos fatos vive um sonambulismo que também se abaterá a seu marido e a Tertuliano que vulnerável deixará seu sósia, ou seria seu original, planejar uma noite com sua amada.

Arraigado em seus planos, vinga-se de Antonio Claro, dormindo com sua esposa como tal a fosse. Arrependido, volta-se o destino a vingar-se de ambos. Antônio Claro e Maria da Paz morrem em acidente de trânsito quando voltavam do encontro planejado por aquele para forjar a mesma vingança vinda das leis de Talião. Sem identidade, pois é confundido com o seu caricato, Tertuliano é considerado morto passando a outra identidade: a cópia de si, pois a si já não pertence. Num desfecho impressionante o mesmo Tertuliano, agora Antonio Claro, atende a uma chamada e ao ver a história se repetir resolve pôr-lhe um fim a próprias mãos. A quem Saramago já encantar antes com livros como “Ensaio sobre a Cegueira”, “A caverna” e “Jangada de Pedra” certamente será de um fascínio o diálogo entre a identidade perdida e transformada numa obra densa e repleta de reflexões.


No coração do mar – Nathaniel Philbrick

A verdadeira história do baleeiro Essex atacado por um cachalote em 20 de novembro de 1819 e o drama de seus tripulantes contras as intempéries do mar são os principais temas deste maravilhoso romance de Nathaniel Philbrick.

O porto de Nantucket, cidade marítima situada na costa leste dos EUA, viria a se tornar uma das mais ricas cidades portuárias do início do século XIX. É de lá que partem George Pollard Jr (capitão do Essex), Owen Chase (primeiro imediato), Matthew Joy (segundo imediato), três arpoadores, o comissário Willian Bond, 13 marinheiros e o camareiro Thomas Nickerson com apenas 15 anos rumo à Região ao Largo no Pacífico Norte para caçar baleias.

A viagem, pela costa da América do Sul, estava prevista para durar dois anos e parecia estar seguindo seu curso normalmente. As baleias tão cobiçadas pelo seu alto valor no mercado eram cozidas para transformarem-se em óleo. Outro elemento muito procurado era o espermacete, líquido branco, encontrado no crânio dos cachalotes. Os inexperientes tripulantes do Essex mal suportavam o cheiro aziago e podre que infestou o navio após a queima das tiras de couro restantes do cozimento. Trocavam de roupa a cada novo cachalote abatido, descobrindo, mais tarde que um bom marinheiro não dispõe de roupas limpas por muito tempo.

Após algumas paradas na costa do Chile para abastecimento o Essex segue viagem. Novas baleias, novos cozimentos. O navio, distribuído em compartimentos para acomodar mais de 1500 barris de óleo já na costa das Ilhas Galápagos ainda estava muito aquém do desejado. A falta de baleias parecia ser a principal preocupação dos tripulantes do baleeiro, quando um cachalote de proporções maiores do que as de até então vistas, atacou o Essex em uma de suas investidas contra um grupo de baleias.

A milhas da costa os tripulantes daquela embarcação se veem em uma situação de risco extremo. Náufragos, com apenas três baleeiros e muito pouco alimento, seguem perdidos no oceano, orientando-se por cálculos através do uso de bussolas e da própria sorte.

Em uma narrativa rica em detalhes, o leitor é envolvido pelas memórias vivas e fiéis dos sobreviventes do Essex, numa corrida pela vida no imenso oceano Pacífico. O encontro com outras baleias, ilhas remotas e desconhecidas, a escassez de água e comida, a inanição e desidratação e a prática do canibalismo entre os sobreviventes quase a beira da loucura, despertam no leitor a necessidade de uma reflexão sobre os limites físicos e psíquicos do ser humano durante e depois de adversidades extremas como aquela. Recomendadíssimo.

Cultura e diversidade sem igual dos mais diversos cantos do país. Idealizado pelo jornalista Mauricio Kubrusly que, após tantas reportagens para o quadro ‘Me leva Brasil’, o livro mergulha no nada imaginário popular. Sim, todas as histórias são verdadeiras. Algumas bizarras, outras engraçadas, e em alguns casos, tristes. Contadas de modo simples, direto e com total impessoalidade.

Decidir qual seria a primeira obra literária para compor o desafio (um livro por semana) não foi tão complicada. Primeiro, teria que ser uma obra com a cara do Brasil. Segundo, deveria trazes fatos. Terceiro, os fatos precisariam ser diversos. Pronto. Receita no forno, digo, no livro, mãos a obra. Página a página as histórias contadas são de um Brasil simples, muito mais simples a que estamos acostumados a ver na televisão, ou até mesmo naqueles livros com histórias folclóricas nos quais os fatos, na maioria das vezes, são escondidos pelo imaginário popular. É compreensível. Em ambientes de extrema pobreza o povo sofrido, precisa buscar forças nas crenças que inventa, ou que ouviu falar.

Lugares onde as grandes oportunidades não existem e o preço de um dia inteiro de suor sob sol forte e condições precárias não passa de R$ 1,00. Onde nota de 5 é aparição e a ‘tapera velha, desgarrada’ só é melhor do que nada.

A obra comprova, e quem assistiu pode confirmar, que a parte mais pobre e talvez mais bizarra do Brasil ficasse no nordeste. Não é a toa que mais da metade das histórias sejam de lá. Da cidade quase sem canos àquela que conta a história de nosso ex-Presidente Lula, do filho que criou uma avenida com o nome da mãe dentro de casa, tamanho seu amor por ela ao pai cabeleireiro, macho, ‘craque’ de bola do pior time do mundo. Os nuances são construídos e separados por assuntos. Não em forma de contos, o livro não se propõe a isso, mas numa linguagem quase jornalística-popular, ora temos impressão que o jornalista nos fala, ora ficamos com a sensação de que os próprios personagens tomam forma, roubam a cena e nos contam na primeira pessoa, cada episódio.

Confesso que senti falta do povo gaúcho. Será que não temos história para contar ou nos esquecemos de que as histórias boas são aquelas que fogem os livros, correm lugares e acabam inusitadamente nas mãos de jornalistas curiosos. São 150 histórias e seria mentira dizer que há uma que mais gostei. Mas posso confessar a mais curiosa: a privada com a vista mais bonita do Brasil, onde tem muita gente que espera mais tempo na fila para apreciar a paisagem que para... A todos uma boa leitura.

Texto: João Paulo Massotti