Cor de maçã madura. Era esta a cor do telefone da sala, colocado delicadamente entre a estante e a parede branca já descascada pelo tempo em uma pequena escrivaninha marrom claro, com duas gavetas e um pequeno espaço onde havia um bloco preso a uma caneta para, em caso de urgência, usar nas anotações.
Ele estava no banho quando o telefone tocou pela terceira vez. Da primeira havia saído. Verificou a geladeira e pôde constatar que tudo nela gritava por alguma coisa comestível. Da segunda, estava ouvindo um disco antigo da Madonna no último volume e, agora pela terceira vez, no banho, ele pensou em não atender, pois não sabia das outras vezes que ele, o telefone, tocara. Enxugou-se, atravessou o corredor, mas não foi rápido o suficiente. 'Preciso de um telefone sem-fio' pensou pela milésima vez. Quando estamos no banho milhões de coisas 'inacontecíveis' (essa palavra não existe) acontecem. Lembrou então da carne que queimou quando ficou ouvindo 'Your body is mine' enquanto ensaboava as partes. Definitivamente, o chuveiro não atrai coisa boa.
'Preciso de um telefone sem-fio, ou de uma extensão maior' voltou a pensar e, enquanto se enxugava o telefone tocou novamente. Correu como um louco desvairado para atender a ligação, e poderia ser um daqueles call centers chatos oferecendo porcarias que nunca pensou sequer existir, ou a diretora da escola convocando para mais uma reunião extra depois das seis da tarde num dia extremamente quente. Mas pensou também, que poderia ser algo importante. Como o gerente da Caixa Econômica que ligava para avisar que ele era o mais novo ganhador da Mega Sena, ou o grande amor que conhecera anos atrás no velório do pai do melhor amigo e que agora estava disposto a largar tudo por ele. Mas não! Era Ana, uma amiga de infância que agora estava morando na Capital e que ligava sempre que se sentia triste e sozinha. 'Por que as pessoas ligam sempre que estão tristes e sozinhas e nunca quando estão alegres e acompanhadas' pensava ele todas as vezes. 'Vai ver que a companhia afasta a solidão e o medo e derruba o telefone, ou tira ele do gancho.'
Desta vez, porém Ana não ligou para reclamar do namorado número três (seria Paulo, ou Braulio, não lembrava mais) que esqueceu dela ao lado do banheiro masculino na 'Noite do Agachadinho'. Ela estava ligando por culpa dele. Dele. DELE?! Como assim? Não estava entendendo. Ele, pela primeira vez, era o motivo daquela ligação.
Estava pelado, sentado ao sofá da sala ouvindo o que Ana tinha para lhe falar. Sim, porque quando soubera que o motivo da ligação era ele, deixou a toalha cair e sem saber o porquê, fez questão de ficar assim: nú, sem culpa, sem panos para esconder a verdade.
Agora ela falava de uma tal de 'política de solidariedade' na qual os fundamentos estavam baseados na proteção daqueles que, mesmo ameaçados, insistiam em defender suas ideologias sendo elas, loucas e fragmentadas. Ele apenas ouvia, nem ao menos bocejava com aquela ladaínha puritana. 'Quem grita, põe a cara a tapa e não exita em mostrar a outra face.' pensou. 'Morrer por um ideal, sem prestígios de governo. Ah, o sonho de todo 'bom pastor.'' ditava para si intimamente. Na verdade ele não estava entendendo nada do que ela falava. Sabia que ela falava e, de vez enquando se permitia prestar atenção à palestra. Pelo pouco que entendeu, Ana estava preocupada com seus escritos. Sempre tão tristes, pessimistas, destruidores. Sim, escrever uma coluna semanal para o Jornal Mascates era tarefa que cumpria prazerosamente. Tudo bem que os textos, na sua grande maioria, falavam de amores inacabados, consumo de drogas exacerbadamente, sexualidade ambígua em desvantagem as tradicionais, ou até mesmo os demônios que escondemos dentro de nós e que, sem notarmos, nos tornam a casca dura e crua que somos às vezes, mas ele estava feliz com tudo isso. Poder escrever. Dividir com as pessoas suas preocupações. Seus medos. Poder divagar sobre o desconhecido sem medo de conhecê-lo. Ah, sim! Como isto tornava forte. E Ana, não compreendia. Ana, sua melhor amiga de antes.
Pensou em desligar o telefone. Pensou em dizer que tinha um compromisso para mais tarde e que agora não podia falar. Em dizer que sua mãe chegara e que agora precisava dar atenção à ela. Pensou. Todo mundo pensa este tipo de coisa. Todo mundo inventa mil desculpas. Mas, lembrou! Não haviam panos para esconder a verdade. Ela é nua e escorre pelo nosso corpo como um gelo. Derrete sobre nosso poros e é absorvida lentamente como um veneno mortal.
Depois que Ana terminou, não pensou em dizer muita coisa. Prometeu mudar. Escrever coisas alegres. Falar das festas que nunca ia. Dos almoços que não participava. Das leituras azedas daqueles romances bobos onde sempre há um mocinho para salvar a virgenzinha das garras da terrível corda da vida. Prometeu (os dedos cruzados). Se a verdade dói mesmo como dizem, que seja uma dor mortal. Que incomode. Atrapalhe. Azucrine. Verdades que lembram mentira são felicidades dolorosas. E ele não queria isso. Nunca quis.
Desligou o telefone e de sobressalto levou-o ao gancho. Pensou em juntar a toalha, vestir o pijama e escrever um pouco mais para a coluna de amanhã. Mas não fez isso. Sentou-se novamente na poltrona e ficou imaginando Ana. Pobre inocente vítima de um sistema que amordaça, prende e domína os alienados pela vida. Presos à gaiola de vidro, feito conserva em decomposição. Pobre Ana, pobre sistema, pobre vida - a ele apenas, bastava esperar uma nova ligação.

João Paulo Massotti - 13/01/2009